domingo, 7 de novembro de 2010

Memórias de Lisboa

Partida em plena Ponte Vasco da Gama
Parque das Nações
Ponte Vasco da Gama
Praça 25 de Abril

Uma sociedade desactivada

Cintura do Porto de Lisboa
Estação de comboios de Santa Apolónia
Panteão Nacional
O Rio Tejo e o Cristo Rei
Pavilhão de Portugal

Lisboa, Setembro de 2010
Domingo de Sol. Cerca de 17 mil pessoas estendem-se ao longo dos últimos quilómetros da ponte Vasco da Gama com um destino comum: Lisboa e o Parque das Nações.

Os caminhos podem ser percorridos de forma ligeira e digna de uma manhã domingueira (mini-maratona de 6 quilómetros), ou por caminhos mais longos e tortuosos (meia-maratona).

Junto à partida dão-se os inevitáveis encontros entre corredores que parecem partilhar estes desafios há anos. Abraços e gargalhadas. As piadas competitivas. No ar sentem-se os odores de pomadas analgésicas de quem quer esquecer momentaneamente alguma dor. O som de uma hélice de um helicóptero arranca os últimos acenos dos corredores para o ar. A energia humana mistura-se com um som distorcido e ensurdecedor projectado por colunas espalhadas pela ponte. O ambiente é caótico e vibrante.

Início de mais uma prova na minha cidade. Não existem segredos em grande parte das ruas de Lisboa e muitos dos seus cantos guardam memórias de rostos ou circunstâncias particulares.

E assim foi. Desde logo na partida onde há dois anos iniciei a minha primeira meia-maratona mergulhado num mar de incertezas e angústias e ao som da “La Revancha del Tango” dos Gotan Project.

Após dois quilómetros sobre a Ponte Vasco da Gama alcançamos as margens de uma nova Lisboa que começou a ser erguida há cerca de 15 anos, quando o país ainda se julgava próspero. Anteriormente este espaço era ocupado por unidades industriais falidas e suas respectivas lixeiras. Os solos contaminados da zona criavam barreiras intransponíveis entre os Lisboetas e o Rio Tejo. Hoje vive aqui uma nova cidade contrastante com o charme da Lisboa antiga do centro.

Prosseguimos por entre prédios altos de formas contemporâneas até chegarmos ao quilómetro 5 e o primeiro grande aglomerado de público. Ouvem-se aplausos que nos enchem de energia. As nossas pernas parecem ficar mais leves e as passadas alargam-se, como que retribuindo o gesto de um público anónimo.

Seguimos paralelamente ao Tejo junto ao Porto de Lisboa. Edifícios de linhas rectas e provavelmente erguidos durante os anos 60. Muitos ainda ostentam nomes de sociedades e cooperativas entretanto desaparecidas.

O Sol brilha com maior intensidade e põe a descoberto os prédios que envelhecem à medida que caminhamos para ocidente.

O Porto de Lisboa parece estar calmo e tranquilo. Com poucos cargueiros atracados, gruas paradas e centenas de contentores coloridos de todo o mundo acumulados.

Esta zona portuária parece ser um local inóspito e com poucos motivos de interesse. Mas enquanto percorro estes quilómetros sou tomado por múltiplas memórias. Como um beijo nocturno à beira rio, um jantar de amigos, um amanhecer numa varanda de discoteca, um "brunch" com vista para um cruzeiro, um comboio que apanhei sem destino, a Amália, os cacilheiros que cruzam as margens do Rio Tejo, o cheiro das sardinhas assadas dos restaurantes no sopé da Colina de São Vicente e às portas de Alfama.

O ponto de retorno estava marcado junto ao Jardim do Tabaco. Por essa altura os pensamentos retrospectivos foram interrompidos por um atleta debutante na distância. Parecia procurar alguém com quem desabafar, embora me parecesse muito confortável na sua corrida.

A prova estava a ser feita a um ritmo elevado, pelo que uma conversa animada não estava nos meus planos. Mas durante quatro quilómetros conversámos sobre as suas dúvidas e as nossas experiências de corrida. O mercúrio aumentava e o cansaço foi-se apoderando de mim. A conversa tornou-se então mais intervalada e terminou com ele a incentivar-me à medida que se ia afastando.

Mas a meta junto ao Pavilhão de Portugal já não estava longe. O público volta a aparecer, as últimas reservas de energia são activadas e o último quilómetro é feito a uma velocidade acima da média.

O aproximar do final da prova faz-me recordar o momento em que terminei a minha primeira meia-maratona há dois anos neste preciso local. O avistar da meta e a certeza que iria concluir aquele meu primeiro desafio no mundo da corrida inundou-me de alegria e com uma sensação de dever cumprido. Pensei então que teria alcançado a meta. Sem nunca perceber que estava ali mesmo, em frente ao Pavilhão de Portugal, a começar uma corrida que não mais iria ter fim.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Corro Peste, corro Buda














Budapeste, Setembro de 2010

Manhã de Primavera no Leste Europeu. Milhares de pessoas começam a aglomerar-se no Parque da Cidade para a 25ª Meia-Maratona de Budapeste.


Aqui, como em qualquer parte do mundo, uma prova de corrida é sinónimo de festa. Lado a lado na partida alinham homens e mulheres, profissionais e amadores das mais diversas nacionalidades, raças e religiões. Todos partem ao mesmo sinal sonoro e têm, teoricamente, as mesmas possibilidades de ganhar. O resto é determinado pelo talento e pelo trabalho. Como deveria ser em tudo na vida.

O início da prova é antecedido pela actuação de um grupo de samba que parece ser composto exclusivamente por húngaros. Como que por contágio, os últimos exercícios de aquecimento e alongamento em meu redor passam a ser pautados por ritmos de percussão brasileira. Sinais da globalização de culturas.

10 horas e o tiro de partida. Era importante iniciar a prova a um ritmo vivo para evitar uma corrida atrás do prejuízo mais adiante.

E assim foi. Motivado por dezenas de furiosas lebres contorno a Praça Hősök em direcção à charmosa Avenida Andrássy, classificada em 2002 como Património da Humanidade pela UNESCO.

Deslizamos pela avenida formada por mansões neo-renascentistas e edifícios de fachadas deslumbrantes. Mais adiante a magnífica Ópera de Budapeste.

Em perfeita harmonia com esta primeira fase do percurso, a organização instalou cinco palcos improvisados onde pianistas interpretavam clássicos de Ferenc Erkel, Gustav Mahler e Franz Liszt.

Recordei-me dos tempos em que ouvia os Nocturnos de Chopin interpretados pela Maria João Pires durante treinos de recuperação. Aí o objectivo era manter um passo lento e regenerador. Hoje precisava de um passo frenético e que me levasse a ultrapassar anteriores máximos.

Após descer a Avenida Andrássy e uma rua seguinte, vislumbro o Rio Danúbio e a fantástica Ponte das Correntes (Széchenyi Lánchíd).

Pelo caminho não se avistam muitos populares nas ruas a aplaudir quem por ali passa no pelotão. Talvez muitos recuperem ainda das noites loucas nas caves de Budapeste, muito notabilizadas pelo clássico dos Mão Morta. Pois se assim for, estão perdoados os habitantes de Budapeste!

Já do lado de Buda, a prova prossegue junto às margens do Danúbio. Neste momento estávamos em perfeita sintonia pois ambos corríamos em direcção ao Mar Negro com a mesma determinação e confiança, como se nada nos pudesse parar.

O Sol aperta e o mercúrio sobe. Mas uma temporada de treinos em África e no implacável Verão português fez com que estivesse preparado para mais esta dificuldade.

Por volta do quilómetro 9,5 o primeiro ponto de retorno. Passámos a correr na direcção oposta à corrente do rio. E a Natureza como que deixou de colaborar connosco, pois senti de imediato um vento intenso contra o meu corpo.

Penso nos cerca de 7 quilómetros de duelo que teria que travar contra o Danúbio e começo a duvidar que este seria o dia para quebrar novas barreiras.

Mas o quilómetro 10 chegou com uma melhor marca pessoal da distância e um renovar de confiança.

Passo junto à magnífica e imponente fachada estilo “art nouveau” do Hotel Gellért onde estava hospedado. Inevitável suspirar pelas massagens e banhos de águas termais (ricas em cálcio e magnésio) que me esperavam da parte da tarde. Mas sei que muito tenho que sofrer até lá.

Um coro de aplausos espera-nos à entrada da Ponte da Liberdade (Szabadság híd), a mais bela de Budapeste. Toda construída em ferro e exemplarmente conservada.

Já de regresso a Peste, tempo para um reforço de frutos silvestres à base de cafeína e guaraná antes de enfrentar um novo “round” contra o vento que corria a favor do Danúbio.

Nas margens do Danúbio aproximo-me de um grupo que corria a um ritmo superior para abrigar-me do vento. Enquanto aguentei fui atrás deles. Éramos um grupo de cinco e corremos silenciosamente alinhados a um passo sincronizado. Confiávamos no comandante do pelotão e a corrida quase se tornou mecânica. Consciente da sua responsabilidade, sempre que havia um desnível no solo, o líder do pelotão fazia um gesto apontando para o obstáculo. Este era imediatamente reproduzido por todos sem excepção até à cauda do grupo. A corrida tem destes momentos únicos de solidariedade. Ali estava um líder anónimo a dar o peito ao vento em nome do seu pelotão de desconhecidos e ainda encontrava forças para alertar para as trajectórias que os demais deveriam seguir.

Novo ponto de retorno ao quilómetro 16 e com ele esperava obter uma trégua em direcção à meta final. É certo que o vento deixou de exercer a sua força contra nós, mas também não demonstrou a sua solidariedade dando-nos um merecido apoio.

O coração bate forte. Mas não sei quanto ao certo desde que me libertei do medidor de frequência cardíaca há dois meses. Não tenho dores. Não me sinto esgotado. Faço contas ao tempo perdido nos últimos quilómetros e concluo que estou muito próximo do objectivo para o qual treinei.

Deixo o Danúbio definitivamente para trás enquanto subo a cidade em pequenos troços em direcção ao Parque. As paisagens perderam interesse pois entramos em zonas residenciais, percorremos viadutos e zonas de obras. Mas a motivação é crescente pois já “cheira” a meta. E com ela regressam os aplausos que crescem em quantidade e volume até final.

Sei que vou conseguir e mentalmente percorro alguns dos sítios por onde treinei para aqui estar e todos aqueles que me ajudaram nos últimos meses.

Da Baía à Ilha de Luanda. Da Cidade do México, passado por Acapulco e Mérida. Do Parque da Paz à Costa da Caparica.

A plateia saúda todos os atletas. Muitas das palavras de apoio são proferidas em magyar e portanto imperceptíveis. O “speaker” vai dizendo banalidades em inglês sobre os países de origem dos atletas que vão passando a meta: “Italy! Pizza! Macaroni!”

A minha satisfação interior mais do que compensa a luta e o cansaço acumulado nos últimos 21,097 quilómetros. Sensação de objectivo cumprido e o conforto de saber que ainda não conheço os meus limites nas corridas em particular, mas acima de tudo na vida em geral.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Last mango in Acapulco

 






Acapulco, Julho de 2010

Ainda não totalmente refeito dos efeitos do jet lag, desperto bem cedo para a minha primeira manhã em Acapulco.

À saída do quarto para um corredor do hotel sinto de imediato uma onda de choque contra mim. Uma massa de ar quente e húmido parecia envolver o meu corpo. Adivinhava-se uma corrida feita com muito suor.

Ainda assim o céu está nublado o que acaba por amenizar uma temperatura que ronda os 30 graus e uma humidade de 80%.

Início o treino junto ao Hotel El Cano na avenida marginal La Costera (Avenida Costera Miguel Aleman). Os primeiros quilómetros são percorridos num passeio partilhado com alguns transeuntes madrugadores. Do lado da estrada já se registam os inevitáveis engarrafamentos nesta avenida. Do outro lado uma fiada de edifícios densos e imponentes esmagam qualquer ambição de podemos vislumbrar a Baía de Acapulco.

Ouve-se um coro de buzinas dos motociclos mais pequenos aos camiões mais pesados. Sobrepõem-se ainda os ruídos dos motores de dezenas de táxis Volkswagen carocha, muito populares nesta região do México (Estado de Guerrero) pelas suas características únicas (força e fiabilidade segundo os taxistas locais).

A atmosfera adensa-se pelos gases expelidos por muitas viaturas de alta cilindrada que certamente não tiveram qualquer preocupação ecológica na sua construção.

Dezenas de vendedores ambulantes deambulam pelas ruas tentando vender todo o tipo de peças.

Todo este caos de imagens, ruídos e cheiros, bem como uma temperatura que parecia não parar de aumentar e uma humidade nos píncaros tornavam penosos os primeiros quilómetros de treino. Precisava de um momento de regeneração que viria com o Parque Papagayo. Ali como que me isolei momentaneamente da desordem urbanística de Acapulco.

As árvores do parque insonorizavam os ruídos da La Costera e projectavam uma sombra refrescante por todos os caminhos que percorria. Pelo meu percurso só conseguia ouvir risos de crianças curiosas em visitas de estudo e papagaios nervosos enjaulados.

Mas o perímetro do parque é curto e não é representativo das paisagens e gentes de Acapulco. Pelo que dou uma só volta para me recompor e regresso aos caos da urbe.

Contudo, e para minha surpresa, logo após o Parque Papagayo a La Costera como que se libertou do trânsito acumulado e dos prédios que escondem a Baía. Ganho novo ânimo para prolongar o treino. Nos passeios que entretanto ficaram mais largos vendem-se agora granizados multi-sabores de aspecto duvidoso e marisco.

A atmosfera pesada pelos gases dos escapes é agora dominada pelo cheiro a mar e a peixe que chega à praia em barcos de pesca artesanal rebocados manualmente por pescadores.

Alcanço o Forte de San Diego elevado sobre a avenida marginal. Depois de uma volta ao jardim procuro a saída mais próxima e o cenário volta a mudar.

Subitamente estou numa rua de casas baixas e degradadas. Múltiplos cabos de electricidade e telefone cruzam-se a alguns metros de altura. À porta de uma das casas está um senhor sentado a fumar. A única pessoa naquele pedaço de rua. Cumprimento-o e ele fica indiferente. Não responde. Mais adiante vejo uma mulher alta a varrer a entrada de um bar. Ao passar mais perto vejo que é um travesti. Apercebo-me então que estou numa zona “free of Gringos”. Ao acabar de descer a rua tenho duas opções. Voltar à La Costera ou ir um pouco mais adiante neste bairro onde não há qualquer sinal de turistas.

Nesse momento lembro-me do que aprendi com o meu sábio grupo de corrida da marginal de Luanda: se estás numa zona que não te inspira confiança corre rápido e com um ar decidido. Ninguém se mete contigo. Se fores devagar e com um ar cansado, as probabilidades de se meterem contigo aumentam.

E assim foi. Entrei por aquela rua com uma passada vigorosa e sem perder a oportunidade de absorver cada detalhe daquele quadro. Paredes pintadas de várias cores com reclames publicitários. Lojas nos pisos térreos sem janelas e paredes e que dão acesso directo para a rua. Frutarias que perfumam momentaneamente alguns dos metros que percorro. Barbeiros sempre ocupados, churrasqueiras que trabalham a todo o gás como se já fosse hora de almoço.

Alcanço um cruzamento que marca o meu ponto de retorno. Sinto-me em “casa” depois de ver um par de camisolas da Selecção de Portugal e aproveito para tirar algumas fotos do telemóvel.

Regresso a um bom ritmo em direcção ao hotel. Mas suspiro por um mergulho refrescante nas águas do Pacífico.

No final, para além do mergulho, ainda pude saborear uma manga fantástica que comprei a um vendedor ambulante. E lembrei-me de uma música country do Jimmy Buffett, que me foi apresentada através de um livro do Robert James Waller “Música na Fronteira”:

“He said I ate the last mango in Paris
Took the last plane out of Saigon
Took the first fast boat to China
And Jimmy there's still so much to be done”

Sem dúvida que há ainda muito caminho por percorrer por esse mundo fora...

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Angola oi qu’povo sabe



















Algures entre Sanganos e Cabo Ledo, Junho de 2010

Manhã típica de “cacimbo”, o Inverno Angolano. Céu encoberto em tons de cinzento. Temperaturas que deveriam rondar os 25º e a humidade nos 70%.

Será o meu primeiro treino longo em Angola e é necessário munir-me de todos os acessórios para que este passeio não se faça somente de sofrimento.

E assim foi. 2 litros de água no “camel bag” e meio litro de Isostar. Óculos de sol, chapéu e protector solar.

Sem destino, início a minha corrida num tapete de terra vermelha em frente ao Restaurante Pirata, na Praia dos Sanganos.

O primeiro ponto de passagem é uma praia de pescadores. No momento algumas embarcações de pesca artesanal alcançavam terra firme e descarregavam o resultado de um trabalho provavelmente iniciado quando ainda não tinham rompido os primeiros raios de sol.

Os habitantes de Sanganos parecem viver essencialmente deste tipo de pesca, o que lhes proporciona pelo menos uma via de subsistência, ao contrário de muitos que vivem em Luanda e parecem não ter qualquer alternativa.

Percorri cerca de 1km. Precisava procurar outras rotas e começo a subir uma arriba íngreme. Nada agradável no início de um treino. Pelo caminho sou obrigado a perfurar algumas nuvens de poeira levantadas por automóveis transportando gente que, como eu, suspiram por cenários de quietude, longe do caos da cidade de Luanda.

No topo chego a um “musseque” amigável onde estão algumas crianças junto à estrada.

O lema do treino era “carpe via”. “Seize the road”! E não tanto o acumular de quilómetros nas pernas no mínimo tempo possível.

Imbuído desse espírito e fascinado pelos olhos bem abertos de crianças que me observavam com curiosidade não resisto em parar e trocar algumas palavras com elas.

Depois de terem sido feitas as apresentações e trocados alguns sorrisos começam a pedir-me de forma tímida:

“Dá bolacha!”

Como se pedissem um pequeno mimo. Uma extravagância.

Sem bolachas, acabo por despedir-me com a promessa de que iria voltar. Desta vez preparado para satisfazer o pedido tão simples que me havia sido feito.

Enquanto vou passando pelo “musseque”, algumas pessoas olham para mim com desconfiança. Mas um aceno, polegar para cima ou um “bom dia!” da minha parte é suficiente para quebrar o gelo e obter, sem qualquer excepção, uma saudação, um sorriso ou mesmo um gesticular mais frenético como quem quer transmitir uma espécie de energia.

Uma vez alcançada a estrada, encosto-me junto à berma do lado esquerdo e arranco em direcção a Cabo Ledo.

As rectas que percorro cortam uma paisagem repleta de pequenos arbustos e imbondeiros das mais diversas formas. Cada curva dobrada, cada final de uma subida desvendava uma nova recta com quilómetros de distância.

Cruzo-me com alguns veículos e imagino o que os condutores devem pensar desta imagem algo inverosímil. Já fiz aquela estrada muitas vezes e o máximo que vi foi um ciclista a pedalar com o seu carro de apoio. Ou então pessoas a viajar a pé. Mas alguém a correr sozinho… e com ar de quem se está a divertir por ali…

O calor aumenta à medida que vou deixando a praia nas minhas costas. O vento sopra de forma muito ligeira transformando-se momentaneamente em pequenas rajadas sempre que passam veículos pesados a alta velocidade.

Alguns automóveis fazem-me sinais de luzes, outros apitam. Todos os motociclistas saúdam-me. Talvez tenhamos uma maior empatia por partilhamos o prazer de estarmos a viver uma viagem ao ar livre naquele cenário.

Mais adiante vejo alguns sacos de pano colorido junto à estrada e que denunciavam a presença de alguém por perto. Uma senhora idosa que cumprimento do lado contrário da estrada. Acabei por ir ao seu encontro.

Cristina era o seu nome. As mãos e rosto cobertos de rugas indiciavam uma vida difícil e os olhos uma expressão cansada de quem já viu muito.

Enquanto aproveitava para beber água conversava com a Dona Cristina à sombra de um imbondeiro. Ela aguardava pacientemente por uma boleia. Sentada no chão e quase de costas para a estrada contou-me a história do filho que perdeu e do neto que estuda. Parece que estava ali há horas mas continuava serena. Em África espera-se muito. Tudo leva tempo.

Continuo a minha viagem. Na esperança de já não encontrar a Dona Cristina no meu retorno.

Avanço até alcançar uma placa que apontava para uma estrada de terra vermelha em direcção ao Santuário da Muxima. A estrada já não me poderia proporcionar outro tipo de paisagem nos quilómetros que se seguiam, pelo que optei por virar para este caminho.

O terreno era naturalmente mais macio. As paisagens mais áridas. O trânsito praticamente desapareceu.

Junto à estrada ficam algumas casas feitas de canas e com pequenas hortas à porta. Numa delas duas senhoras parecem moer farinha em torno de um pilão.

À margem da estrada um sinal vermelho e branco. Por momentos receei que pudesse ser um aviso de minas. O que não fazia sentido pois naquela estrada haviam marcas de pneus de automóveis e algumas pegadas.

Prossegui então. Mas pensei que aquele bem poderia ter sido um cenário de guerra há 10 anos atrás. E como a paz que se vive em Angola me concedia a liberdade de percorrer aquelas estradas sem qualquer restrição. Mas acima de tudo como a paz devolveu ao povo angolano alguma esperança.

Os sinais de qualquer presença humana tinham desaparecido por completo. Os campos vão ficando amplos e iluminados por uma luz fantástica. Paro uma vez mais à sombra de um imbondeiro que marca aproximadamente o meu ponto de retorno. Refresco-me e reponho algumas energias com uma barra de figos.

Estou atrasado para o almoço. Quero fazer um regresso mais rápido e concentro-me de forma a marcar uma passada constante.

Depois de voltar à estrada vejo uma carrinha Toyota Hiace pintada de azul e branco, vulgarmente designadas por carrinhas dos “candongueiros”, transporte público por excelência em Luanda e arredores. A carrinha vinha sobrelotada e buzinava de forma desafinada para mim. Diversos braços agitam-se fora das janelas! Momento simpático. Não sei se queriam saudar-me e dar-me uma força ou dizer-me que lá dentro não cabia absolutamente mais ninguém, pelo que deveria continuar a correr.

As temperaturas aumentaram para níveis desconfortáveis. O asfalto ferve e o sol brilha com maior intensidade. Os resquícios de uma manhã de cacimbo já tinham desaparecido mas não vou parar até chegar ao meu destino.

Até chegar a um pequeno estaleiro de obras já perto dos Sanganos. Ali um rapaz por quem tinha passado na ida chama por mim. Fui em direcção a ele e perguntou-me, com um rosto de preocupação, se eu estava à procura de alguém ou se estava perdido. Sorri e tentei explicar-lhe que fazia isto só porque gostava! Ainda que tenha ficado intrigado e não totalmente convencido, pareceu ter ficado mais descontraído e apresentou-se como sendo o Máquina. E voltou para a betoneira que não deixou de trabalhar.

De regresso ao restaurante Pirata, e enquanto tomava um banho no mar, senti-me plenamente realizado com a viagem que fiz. Porque viajar é isto. Percorrer um espaço repleto de cenários fantásticos e pessoas diferentes com quem podemos aprender sempre um pouco mais.

sábado, 19 de junho de 2010

Contrastes na Baía de Luanda









Luanda, Maio/Junho de 2010

Dia

Dia de África em Angola. Aproveito a flexibilidade que um dia de feriado me dá para fazer um primeiro treino na Baía de Luanda.

Não foi uma estreia. Já havia corrido por ali em anos anteriores. Mas tenho sempre alguma curiosidade em notar as pequenas grandes diferenças que fazem com que Luanda comece a recuperar de décadas de estagnação. Uma rua alcatroada, um prédio novo, um buraco na estrada que deixou de existir ou um jardim recuperado.

Confesso que após ter estacionado junto ao Porto de Luanda estava à espera de encontrar uma marginal mais condicente com a beleza potencial desta Baía.

Ao invés, encontrei um cenário pior do que no ano passado.

Palmeiras despidas de folhas, passeios cobertos de terra que se levanta a cada sopro de vento, blocos de cimento do passeio levantados, autêntica crateras no circuito capazes de “engolir” parcialmente quem por ali passa, águas da baía que apresentam um aspecto espesso, manchadas por óleos e salpicadas por detritos de toda a espécie.

O dia está quente. 28 graus. A atmosfera não é agradável de se respirar. Mas este é o cenário com o qual me vou deparar nos próximos tempos. Por isso deixei-me de lamúrias e suspiros por cenários mais simpáticos e arranquei do Porto de Luanda em direcção ao ponto de retorno, marcado por uma bomba da Sonangol e as suas eternas filas de abastecimento.

Começo por tentar ambientar-me a este ar quente e húmido, bem característico de África.

Este calor como que envolve o nosso corpo dando uma sensação de grande conforto no dia-a-dia, mas não em particular quando se faz uma corrida.

Começo o treino numa passada lenta. E observar as paisagens recortadas por prédios enormes que nascem como cogumelos, os últimos modelos de jipes e SUV que aceleram pela marginal e algumas pessoas que passam por mim. Desde meninos que deambulam pela rua sem destino e de olhar vazio. Um par de “zungueiras” que carregam alguidares na cabeça e crianças nas costas, expatriados que pareciam ter ainda maior dificuldade a respirar aquele ar denso, um homem que dorme num banco e outro de roupas rasgadas e cobertas de pó que balbucia sons imperceptíveis sempre que passo por ele.

Luanda está calma. E imbuído dessa mesma calma e tranquilidade que caracteriza África termino o meu primeiro treino, com a certeza que ali vou regressar muitas vezes.

Noite

Concluir dias preenchidos de trabalho com treinos junto à Baía é o maior antídoto que encontrei para combater as rotinas diárias de Luanda e, claro, tentar segurar a condição física que fui adquirindo nos últimos meses.

Logo nos primeiros dias fiz algumas amizades com alguns frequentadores assíduos deste espaço. Companheiros de corrida para todos os ritmos.

Correr na Baía de Luanda ao início da noite revelou-se bem mais agradável do que fazê-lo durante o dia.

A começar pela temperatura que desce até cerca dos 20 graus. Bem como as ligeiras brisas que, quando não temos maré baixa, podem tornar-se realmente refrescantes.

Todo o tipo de gente percorre este passeio com cerca de 1,5 kms de cumprimento.

Diria mesmo que pode ser algo representativo das pessoas que hoje em dia vivem em Luanda. Desde de portugueses que se fazem ouvir pelo caminho, chineses que têm vindo a chegar em maior número a Angola, expatriados franceses e americanos que ostentam os seus ipod de forma ingénua, angolanos das mais diversas classes e raparigas simpáticas que nos dão algumas palavras de incentivo e coragem, sempre bem-vindas.

Pelo caminho também encontro alguns grupos de ginástica que, segundo me dizem, se juntam de espontaneamente e de forma regular.

Sente-se uma boa vibração entre as pessoas que por ali circulam. E o tempo passa depressa à conversa com meus companheiros.

O pior chega nos dias em que a maré está baixa. Como numa Sexta-feira em que a Baía estava com menos gente do que é costume e aproveitei para fazer um treino de maior velocidade para as pernas não se esquecerem.

O circuito tinha sido tomado por um cheiro absolutamente nauseabundo para o qual muito contribui os esgotos que devem ali desaguar sem qualquer tratamento.

A iluminação também era deficiente, resultado das obras que por ali vão começar, segundo dizem.

Ao acelerar numa recta e motivado por momentos antes me ter cruzado e saudar uma velha glória do atletismo português que treina regularmente na Baía, sinto um impacto em algo macio que acaba por rolar cerca de um metro para a minha frente e fugir para a minha direita.

Tinha acabado de abalroar uma ratazana que tinha saltado da Baía. Naturalmente não me preocupei com a condição do animal. Fui simplesmente tomado por um sentimento de repugnância que me fez correr ainda mais depressa.

Pensei que aquela seria a minha última corrida na Baía. Mas depois recordei-me que também no Estádio Universitário (onde treino a maior parte da vezes em Lisboa) também já me tinha cruzado ratazanas, cheira mal quando estão a fertilizar os campos e a iluminação à noite é igualmente deficiente.

Decidi dar nova oportunidade e continuei por ali a correr naquele dia e nos seguintes.

Um dia sei que este lugar vai ser melhor, tal é o potencial evidente deste local. Nessa altura vou-me rir daquilo que foi a Baía de Luanda, outrora em vias de abandono.

domingo, 25 de abril de 2010

Dank u Rotterdam!











Roterdão, Abril de 2010

KM 0. Chegado ao local de partida, sinto pela primeira vez a atmosfera absolutamente electrizante desta maratona. Junto à partida, uma grua ergue um senhor de idade avançada que canta uma música. Milhares acompanham-no com grande entusiasmo. Gostava de poder fazer o mesmo, mas toda a tensão do momento, bem como o facto de ser imperceptível o que se estava a cantar, acabam por me lançar num último retiro de introspecção. Como que percorro um "checklist" mental para ver se não me esqueci de nada. Desperto cada um dos músculos e peço-lhes lá no meu íntimo que não me falhem nas próximas horas.

Ouve-se o disparo de um canhão. É o sinal de partida e cerca de dez mil pessoas lançam-se em histórias de bravura e incerteza até final.

As avenidas principais junto à partida estão repletas de gente entusiasta e são disparadas centenas de fotografias de forma aleatória sobre todos os corredores que por ali passam.

Seguimos em direcção à Erasmus Bridge. Pelo meio encontro encontro a torcida Wikaboo que solta algumas palavras de incentivo. Vamos no primeiro quilómetro. A pulsação está alta para o ritmo em que estou a correr. Provavelmente resultado de emoções fortes no início da corrida.

As ruas continuam coloridas e barulhentas, cruzamo-nos com as primeiras bandas que tocam com a mesma energia que todos os atletas tinham por aqueles primeiros quilómetros.

Chegamos ao De Kuip, Estádio do Feyenoord. Conhecido também pela “Banheira de Roterdão”. Naquele estádio a Selecção de Portugal já foi muito feliz. Até o meu azarado Sporting conseguiu por lá ser feliz um dia na Taça UEFA. Pensei que pudesse ser um bom prenúncio para a viagem que estava a fazer.

Recordei-me que os primeiros dez quilómetros devem ser feitos de uma forma confortável. Instruções que são unânimes entre todos “misters”. E assim prossigo. Confortavelmente e a analisar com interesse cada detalhe deste novo cenário.

Alcançamos um bairro residencial. Pensava eu que seria uma parte do percurso menos interessante. Mas eia que começo a avistar centenas… milhares de pessoas nas ruas. Pessoas que abdicaram de umas horas extra de sono, ou conforto nos seus lares, para aplaudirem um bando de loucos predispostos a sofrer durante 42 quilómetros.

Cruzo-me com múltiplas manifestações populares! Pessoas mascaradas, erguendo no ar cartazes de incentivo aos corredores em geral ou a alguém em particular, cornetas, apitos, balões coloridos, pessoas que acompanham os corredores de bicicleta nas ciclovias paralelas à estrada agitando chocalhos de vacas. Enfim, um ambiente caótico e para o qual era impossível ficar indiferente. Momentos houve em que corri arrepiado não do frio que se fazia sentir mas da energia humana que por ali havia.

Perto da meia-maratona, percorro pedaços de estrada delimitados por centenas de pessoas apertadas entre si. Como que se estendessem uma passadeira que em momento algum é pisada por quem não esteja a transitar na maratona. Gritam palavras que são imperceptíveis. Há como que uma energia vibrante no ar que passa da assistência para mim. E acredito que para os outros corredores. Começo a ficar mal habituado com tanta manifestação de apoio e fico inquietado com a possibilidade de este não existir para além dos 30 quilómetros, ou seja, quando mais iria precisar dele.

Entre a assistência vejo pessoas de todas as raças e que devem representar diversos países. Essa miscelânea de gentes de todo o mundo é também característica da Holanda, conhecida por ser uma sociedade tolerante e progressista.

Crianças abeiravam-se da estrada e estendem as mãos para que os corredores os largassem um “high five” enquanto passavam. A alguns (não a todos porque eram muitos!) retribuo e obtenho em troca sorrisos que mais do que compensam alguma desconcentração momentânea.

Por volta dos 24 quilómetros estou lado a lado com um corredor que encontra a família que começa a manifestar-se ruidosamente a cerca de 100 metros de distância enquanto agitavam cartolinas gigantes ao verem o seu ídolo aproximar-se. A família do maratonista em questão bem poderia estar toda ali. Vi pessoas mais idosas, crianças e até o cão que, erguido no ar pela dona, teve direito a um leve cumprimento do dono que passou sem parar.

Penso que um cumprimento da cadela Rotweiller dos meus pais poderia ter sido desastroso naquele momento.

Estou numa velocidade estável. Sinto-me muito bem e confiante. Antes de regressar à parte norte de Roterdão, atravessando novamente a Erasmus Bridge, passo novamente pela torcida Wikaboo, identificada com uma grande bandeira portuguesa. É sempre um conforto ver caras conhecidas entre a assistência.

Aos 30 quilómetros tenho a ilusão de que estou perto. Mas lembro-me das palavras sábias do meu treinador que diz que, numa maratona, a “meia” só se atinge aos 32 quilómetros. Pois um profeta dos Classificados do Correio da Manhã não faria melhor prognóstico uma vez que, precisamente aos 32 quilómetros, o meu sistema começa a desligar-se lentamente, sem que nada pudesse fazer para o evitar. Tenho um último gel, mas sinto que ele poderá já vir tarde. Como que estou a ser atraído para um abismo e não há absolutamente nada que eu possa fazer para o evitar. Um avião que vai perdendo cada um dos seus motores e só poderá, neste caso, planar até ao final da corrida.

Restava-me lutar com todas as forças que me restavam, por respeito a todo o treino que fiz ao longo dos últimos meses.

Atravesso um longo e verdejante parque que já não consigo apreciar e o ruído das bandas que tocam pelo percurso começam a incomodar-me em vez de me motivar.
As pessoas junto aos passeios devem ter interpretado a minha expressão de quem estava a tentar galgar um enorme muralha que se tinha erguido à sua frente. Inclinam-se para a estrada e soltam algumas soltam gritos em inglês:

“Come On!!”
“It’s finished!”
“You’re almost there!”

Como que agradecendo a essas pessoas as minhas pernas reagem e a passada acelera por instantes. Mas estou esgotado.

Com os dois últimos quilómetros chega um tónico extra. Tenho a certeza que vou terminar. Não exactamente da maneira como tinha planeado, mas ainda assim com um primeiro tempo decente numa maratona e com a certeza que tenho condições para fazer mais e melhor.

Na recta da meta oiço Wikaboos gritarem pelo meu nome. Foi como voltar a sentir-me em casa. Mas foi impossível esboçar um sorriso para eles ou para as máquinas fotográficas que registavam a minha chegada. Porque já não havia energia para utilizar senão para transportar-me até à meta, andar alguns 20 metros e sentar-me junto a uma vedação onde fiquei alguns minutos a recuperar.

No entanto, durante todo aquele desconforto não me lembro, em momento algum, de me tentar convencer que esta seria a minha última maratona. Pelo contrário…

A Corridinha da Madeira






Funchal, 31 de Dezembro de 2009

Último dia de um ano marcado por um número record de quilómetros a correr por quatro continentes. Para iniciar o programa de festividades, nada melhor do que um treino num cenário belo e vibrante, como é da cidade do Funchal.

Será o meu terceiro “réveillon” na Madeira. E confesso que não me canso de assistir ao intensificar de um frenesim organizado entre os madeirenses com o aproximar da hora que marca o início de um novo ano. Mas vivê-lo enquanto faço uma corrida pelo centro do Funchal foi a primeira vez.

Aqui o 31 de Dezembro ultrapassa em muito um dos mais belos fogos de artifício do mundo. É toda uma experiência de rituais madeirenses inseridas num cenário deslumbrante que enriquecem este dia. Podiam tirar o espectáculo de fogo de artifício daqui e transferi-lo para outro local que certamente não seria a mesma coisa.

Inicio a corrida na Avenida do Mar, muito próximo do local onde, no ano anterior, tive o prazer de participar na Volta da Cidade, conhecida por S. Silvestre do Funchal, a “Corrida de S. Silvestre” mais antiga do país. Esta é uma prova que atrai muitos populares que apoiam com boa disposição e entusiasmo os participantes.

Prossigo junto ao mar em direcção a Este. Pelo caminho tenho por vezes que correr em “modo Cristiano Ronaldo”, pois sou obrigado a “driblar” algumas das centenas de pessoas que por ali fazem os seus últimos passeios do ano. Trespasso algumas colunas de fumo vindas de fornos que vendem comida na rua (bolo do caco?).

Ao largo da baía já se avistam alguns navios cruzeiro de grande envergadura que por aqui permanecem neste dia, injectando na cidade alguns milhares de turistas que desaparecem quase tão rapidamente como aparecem.

Mais adiante o passeio junto ao mar está vedado pela polícia. Ali estão a ser instalados contentores carregados de explosivos para o espectáculo de mais logo à noite. Em seu torno equipas de pirotécnicos ultimam calmamente os últimos pormenores.

Alcanço o Forte de S. Tiago e com ele terminam os passeios junto ao mar. Penso em regressar na direcção contrária, mas decido prosseguir sem destino.

Chegado a uma zona mais antiga da cidade começo a enfrentar ruas com subidas muito íngremes que momentaneamente transformam um “treino-passeio” em “treino-sofrimento”. Enquanto percorria a Avenida do Mar, esqueci-me que o Funchal é uma cidade que, topograficamente falando, pode não ser muito simpática para alguns corredores.

Para trás vai ficando a agitação do centro do Funchal e começo a entrar numa zona mais antiga e rural. As casas vão ficando mais dispersas pelas colinas. Junto a uma pequena localidade, a paisagem é rasgada por uma ribeira que corre em direcção ao mar.

Pelo caminho vou despertando alguns cães de guarda desconfiados. Mas acabam por ser os foguetes e bombas lançadas pelos locais que me provocam alguns sustos durante o meu percurso. O mergulho ocasional numa paisagem calma, silenciosa e tranquila era subitamente por um foguete ou bomba.

Pode parecer estranho. Mas só para quem nunca aqui esteve nesta altura do ano. Esta é uma das características que torna único o fim de ano na Madeira. O fogo de artifício que os próprios madeirenses lançam ao longo do dia nas suas casas. E à medida que nos aproximamos da meia-noite, estas manifestações vão-se sentindo com maior intensidade no Funchal e arredores.

Continuo a subir por estradas estreitas. Cruzo-me com poucas pessoas. Normalmente pessoas que aguardam pelos autocarros Horários do Funchal. Algumas cumprimentam-me e naturalmente que retribuo. Parecia que a corrida de hoje não tinha fim, algures numa localidade (Lazareto?) cheguei a beco sem saída que marcava o meu ponto de regresso. Mas não sem antes aproveitar para contemplar uma extraordinária vista sobre a baía do Funchal, coberta por uma luz alaranjada que indiciava o fim do último dia do ano e o início de uma longa noite. Ao largo os navios parecem posicionar-se para obter a melhor vista sobre o espectáculo do fogo de artifício.

Recupero um pouco do fôlego perdido nas múltiplas subidas que percorri até chegar ao meu ponto de retorno e preparo-me para um regresso que seria bem mais suave, no qual somente tive que soltar as minhas pernas de regresso ao centro do Funchal.

O sentimento de esforço deste treino perdeu-se um pouco com tantas descidas. Pelo que decido prolongá-lo até perto do “Promenade”, no lado Oeste do Funchal.

O trânsito de carros e pessoas começa a intensificar-se, bem como o rebentamento de foguetes e outros explosivos inofensivos. Sente-se que algo de importante está para acontecer. Eu, hipnotizado com tanta excitação em meu redor, acabo por me perder nas distâncias e no tempo.

Já numa tentativa de regresso a casa, percorro a Avenida do Infante iluminada por centenas de lâmpadas coloridas antes de encarar subidas contínuas e ininterruptas. Começo a sentir-me cansado, atrasado e já excedi largamente o treino programado para hoje, tal foi o entusiasmo...

Mas subitamente, e ainda bem longe de casa, sou “recolhido” pelos meus anfitriões e fico a saber que dali a instantes, e já em casa, vou poder saborear os melhores hambúrgueres do mundo, feitos no “Castelo dos Hambúrgueres”. Embora uma actividade desportiva possa parecer contraditória com a ingestão de um hambúrguer logo a seguir para mim foi a melhor das recompensas depois deste final de tarde madeirense.

terça-feira, 13 de abril de 2010

La réconciliation










Paris, Abril de 2009

Maratona de Paris. Quilómetro 30. Em frente avisto a Torre Eiffel. Sinto-me bem fisicamente. Embora não estivesse perfeitamente convicto disso, ocorre-me a ideia de que, eventualmente, completar uma maratona poderia não ser uma tarefa tão dura. Ainda assim, para trás tinha ficado uma primeira parte absolutamente desastrosa, marcada por múltiplos acontecimentos não planeados.

Mas os quilómetros foram-se acumulando e partir de Trocadero comecei a sentir o cansaço físico e mental. Os níveis de ansiedade aumentam. Tento convencer-me que só faltam 10 quilómetros e que já fiz aquela distância múltiplas vezes e sem dificuldade. Mas nunca tinha os últimos 10 quilómetros de uma maratona. Para além disso, tudo aquilo que estava para além do quilómetro 30 era um imenso desconhecido para mim na altura.

Mas parte da energia que havia sido derramada nos quilómetros que para trás ficaram acabou por me ser parcialmente devolvida pelos parisienses que, provavelmente lendo a expressão de cansaço estampada no meu rosto, começaram a chamar ocasionalmente o meu nome. Aqui e ali ouvia-se um “Allez Milton!

Algures no Bois de Boulogne. Sei que estou perto. Mas não consigo avistar a meta. Nem tão-pouco algum aglomerado de pessoas que me indiciem que o final está próximo. Cada quilómetro parece uma eternidade. Passo por tendas da Cruz Vermelha com filas de corredores junto da entrada. Procuram certamente algum alongamento ou massagem miraculosa que lhes permita chegar à meta.

Pelos relvados do bosque vêem-se voluntários (clandestinos) que oferecem massagens aos corredores e ainda me cruzo com bancas que parecem ter sido montadas espontaneamente para servir vinho de Bordéus e Cidra. Afinal é uma maratona em Paris, e há que terminar a prova com estilo. Naturalmente, passei a oferta. Só vejo árvores e lagos à volta. A meta na Avenue Foch só seria avistada a algumas centenas de metros do fim.

Termino a prova e sinto uma enorme sensação de alívio. Completei a minha primeira maratona. Procuro à minha volta algum conforto. Alguém do meu mundo para partilhar o que havia feito ou simplesmente lançar um desabafo depois de um enorme desgaste físico e mental. Acabei por encontrá-la de vestido preto e branco junto ao Arco do Triunfo.

Paris, Dezembro de 2009

De regresso a Paris pela primeira vez após a Maratona de Abril.
Na bagagem um desejo enorme de me reconciliar com aqueles que foram, sem dúvida, e até à altura, os 10 quilómetros mais duros da minha vida.

Precisava relativizar aquele percurso. Para isso queria percorrê-lo em perfeitas condições físicas e sentir o contraste absoluto para com aquela manhã de Abril.
E assim foi. Acordei mais cedo num Domingo e apanhei o metro em direcção a Trocadero. Iniciei o treino em frente Torre Eiffel e prossegui junto ao Sena na “Rive Droite”.

A quase ausência de circulação de veículos e pessoas, bem como a inexistência de qualquer loja aberta denunciavam mais um calmo Domingo parisiense.

Ao contrário da luminosa de manhã de Abril, hoje o dia está frio e corro sob um manto de nuvens cinzentas.

Não me cruzo com nenhum corredor. Somente com os bateaux-mouches que deslizam pelo Sena.

Começo a mover-me para o interior da cidade deixando o rio nas minhas costas. Ao chegar a um bairro tenho a primeira sensação nítida de "déjà-vu". Sei que por ali alguém chamou o meu nome. Alguém que não me conhecia e não me devia absolutamente nada, não deixou de me apoiar.

Entusiasmado com a precisão com que as memórias vão sendo reavivadas através dos dos estímulos sensoriais que vou recebendo ao longo do treino, sigo numa passada mais viva em direcção ao Bois de Boulogne.

Pelo caminho passo pelo Parque dos Príncipes e faço um desvio para um pequeno bairro. Em todas as janelas estão afixados papéis coloridos e por momentos penso que todos aqueles apartamentos estão à venda. Mas tratava-se de uma manifestação coordenada de parisienses locais contra a demolição de um pequeno estádio que aparentemente serve as escolas das redondezas.

Prossigo e o próximo ponto de passagem são os estádios de Roland Garros. Aqui é possível ver alguns tenistas matutinos. Imagino a atmosfera incrível que deve este lugar deve ter aquando da realização do torneio de ténis mundialmente famoso.
Às portas do Bois do Boulogne sinto-me tranquilo e a aproveitar da melhor forma o treino. A absorver cada detalhe que me havia escapado em Abril. Começo a percorrer trilhos enlameados. Provavelmente resultado de uma última noite húmida. Cruzo-me com alguns corredores. Alguns gesticulam levemente com a cabeça deixando uma saudação. Como que um código de boas maneiras que existe entre muitos corredores.

Deslizo até aos lagos do bosque e meio perdido encontro a descida para a Avenue Foch onde terminava a maratona.

De rosto completamente transformado, a Avenue Foch estava despida de corredores e de uma pesada logística de bancas móveis. No lugar de milhares de corredores em êxtase por terem terminado a maratona ou outros a recuperar das suas dores, hoje a avenida está calma e tranquila e conseguem-se ouvir pássaros nos jardins laterais. Subo em direcção ao Arco do Triunfo. Mas hoje não está lá a miúda de vestido preto e branco.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Central Park




Nova Iorque, Novembro de 2009
Porque não consigo abstrair-me totalmente do mundo que me rodeia, procuro alguma da energia que me move na minha envolvente, razão pela qual procuro aliar o gosto de correr com os melhores cenários. E nesse aspecto, o Central Park sempre foi para mim um espaço "fetish".

Antes de partir para viagem, recolhi alguns teasers sobre aquilo que esperava ser um treino memorável. Desde o plano do parque, os percursos que poderia fazer e algumas curiosidades que confirmavam a sua grandiosidade. 341 hectares. Aproximadamente 10 kms de perímetro. 25 milhões de visitas anuais estimadas. Terrenos avaliados em USD 528.783.552.001 (370 mil milhões de Euros!). Dados do início do mês de Dezembro quantificaram a dívida pública do Estado Português em 183 mil milhões de Euros.

Fiquei esmagado pelos números. E mais esmagado fiquei quando tive o meu primeiro contacto com o parque. Um Domingo luminoso. Mas estava longe de estar preparado para uma corrida. Entrámos por Harlem e seguimos em direcção a Midtown.

Pelo caminho cruzo-me com centenas de pessoas que correm e pedalam sobre o asfalto e os trilhos que rasgam o parque em todas as direcções. Procuro perpetuar algumas imagens com algumas fotos. Observo o ambiente que me rodeia com inveja de não poder tirar maior partido dele. A minha expressão de ansiedade foi captada e fui comparado a um miúdo que foi a casa de alguém com piscina e não trouxe fato-de-banho. Foi uma comparação bastante precisa relativamente ao sentimento que tinha naquele momento.

Tinha uma vontade enorme de fazer parte daquele quadro vivo composto por pessoas de todos os géneros, lagos, trilhos, campos verdes, tapetes de folhas caídas. Descobrir todo aquele espaço pelas minhas próprias passadas. Mas as minhas sapatilhas descansavam a dezenas de quarteirões daquele local.

Mantive a calma. Não tinha outra solução. O Guggenheim acabou por revelar-se um óptimo elemento de distracção e a estreia ficou guardada para um par de dias depois.

Já não sob o sol de Domingo, acabei por estrear-me no Central Park (em modo “treino”), num dia cinzento e frio. Entrei pelo parque pela 7ª Avenida com o objectivo de completar uma volta completa de 10 kms.

Percorro os primeiros quilómetros numa passada lenta para aquecer, mas também para não deixar de absorver cada pormenor.

À medida que caminhava em direcção ao interior do parque, os ruídos da cidade vão ficando mais distantes e imperceptíveis e a atmosfera carregada de fumos lançados pelos carros americanos de alta cilindrada são substituídos por um ar bem mais leve. De repente, já nem parece que estamos a percorrer Nova Iorque no início da "rush hour".

O parque está tingido por múltiplos tons de vermelho, castanho e amarelo das folhas que vão forrando os caminhos. Estas estendem longos tapetes que amortecem as minhas passadas.

Esquilos vão-se atravessando ocasionalmente pelo meu caminho. São tantos que se tornam banais poucos quilómetros depois.

Há cerca de uma semana assisti ao final da Maratona de Nova Iorque, que termina em pleno Central Park. Durante o treino começo a ter sensações de "déjà-vu" mas agora bem longe do conforto de um sofá. Tento imaginar o sentimento de milhares de bravos do pelotão que terminaram a prova neste cenário idílico! Sem sucesso porém, pois só tenho cerca de 3 kms nas pernas e estou longe da glória de completar uma maratona...

Chego ao Jaqueline Kennedy Onassis Reservoir pelo East Side. E deparo-me com uma das imagens mais populares do parque. O céu no West Side recortado por um conjunto de edifícios que formam o "skyline" e reflectem sobre o lago.

Em direcção a Harlem, passo por múltiplos recintos de jogos. Pistas de gelo, campos de basebol, “soccer” e futebol americano… todos sem excepção estão ocupados. A vida no parque parece não parar.

Depois de alcançar o ponto de retorno em Harlem, regresso pelo West Side por trilhos enlameados e sob copas de árvores.

Pelo caminho cruzo-me com um conjunto de “nanys” hispânicas sentadas em bancos de madeira a trocar palavras em castelhano enquanto embalam carrinhos com bebés de cabelo dourado.

Deslizo para o final da corrida. Plenamente realizado por ter tido o privilégio de percorrer este espaço magnífico que não desiludiu em nada as enormes expectativas que tinha.

No final paro numa mini roulotte. Os hot dogs tinha óptimo aspecto. Fiquei-me pela Vitamin Water, bebida da moda em Nova Iorque.
 
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