domingo, 25 de abril de 2010

Dank u Rotterdam!











Roterdão, Abril de 2010

KM 0. Chegado ao local de partida, sinto pela primeira vez a atmosfera absolutamente electrizante desta maratona. Junto à partida, uma grua ergue um senhor de idade avançada que canta uma música. Milhares acompanham-no com grande entusiasmo. Gostava de poder fazer o mesmo, mas toda a tensão do momento, bem como o facto de ser imperceptível o que se estava a cantar, acabam por me lançar num último retiro de introspecção. Como que percorro um "checklist" mental para ver se não me esqueci de nada. Desperto cada um dos músculos e peço-lhes lá no meu íntimo que não me falhem nas próximas horas.

Ouve-se o disparo de um canhão. É o sinal de partida e cerca de dez mil pessoas lançam-se em histórias de bravura e incerteza até final.

As avenidas principais junto à partida estão repletas de gente entusiasta e são disparadas centenas de fotografias de forma aleatória sobre todos os corredores que por ali passam.

Seguimos em direcção à Erasmus Bridge. Pelo meio encontro encontro a torcida Wikaboo que solta algumas palavras de incentivo. Vamos no primeiro quilómetro. A pulsação está alta para o ritmo em que estou a correr. Provavelmente resultado de emoções fortes no início da corrida.

As ruas continuam coloridas e barulhentas, cruzamo-nos com as primeiras bandas que tocam com a mesma energia que todos os atletas tinham por aqueles primeiros quilómetros.

Chegamos ao De Kuip, Estádio do Feyenoord. Conhecido também pela “Banheira de Roterdão”. Naquele estádio a Selecção de Portugal já foi muito feliz. Até o meu azarado Sporting conseguiu por lá ser feliz um dia na Taça UEFA. Pensei que pudesse ser um bom prenúncio para a viagem que estava a fazer.

Recordei-me que os primeiros dez quilómetros devem ser feitos de uma forma confortável. Instruções que são unânimes entre todos “misters”. E assim prossigo. Confortavelmente e a analisar com interesse cada detalhe deste novo cenário.

Alcançamos um bairro residencial. Pensava eu que seria uma parte do percurso menos interessante. Mas eia que começo a avistar centenas… milhares de pessoas nas ruas. Pessoas que abdicaram de umas horas extra de sono, ou conforto nos seus lares, para aplaudirem um bando de loucos predispostos a sofrer durante 42 quilómetros.

Cruzo-me com múltiplas manifestações populares! Pessoas mascaradas, erguendo no ar cartazes de incentivo aos corredores em geral ou a alguém em particular, cornetas, apitos, balões coloridos, pessoas que acompanham os corredores de bicicleta nas ciclovias paralelas à estrada agitando chocalhos de vacas. Enfim, um ambiente caótico e para o qual era impossível ficar indiferente. Momentos houve em que corri arrepiado não do frio que se fazia sentir mas da energia humana que por ali havia.

Perto da meia-maratona, percorro pedaços de estrada delimitados por centenas de pessoas apertadas entre si. Como que se estendessem uma passadeira que em momento algum é pisada por quem não esteja a transitar na maratona. Gritam palavras que são imperceptíveis. Há como que uma energia vibrante no ar que passa da assistência para mim. E acredito que para os outros corredores. Começo a ficar mal habituado com tanta manifestação de apoio e fico inquietado com a possibilidade de este não existir para além dos 30 quilómetros, ou seja, quando mais iria precisar dele.

Entre a assistência vejo pessoas de todas as raças e que devem representar diversos países. Essa miscelânea de gentes de todo o mundo é também característica da Holanda, conhecida por ser uma sociedade tolerante e progressista.

Crianças abeiravam-se da estrada e estendem as mãos para que os corredores os largassem um “high five” enquanto passavam. A alguns (não a todos porque eram muitos!) retribuo e obtenho em troca sorrisos que mais do que compensam alguma desconcentração momentânea.

Por volta dos 24 quilómetros estou lado a lado com um corredor que encontra a família que começa a manifestar-se ruidosamente a cerca de 100 metros de distância enquanto agitavam cartolinas gigantes ao verem o seu ídolo aproximar-se. A família do maratonista em questão bem poderia estar toda ali. Vi pessoas mais idosas, crianças e até o cão que, erguido no ar pela dona, teve direito a um leve cumprimento do dono que passou sem parar.

Penso que um cumprimento da cadela Rotweiller dos meus pais poderia ter sido desastroso naquele momento.

Estou numa velocidade estável. Sinto-me muito bem e confiante. Antes de regressar à parte norte de Roterdão, atravessando novamente a Erasmus Bridge, passo novamente pela torcida Wikaboo, identificada com uma grande bandeira portuguesa. É sempre um conforto ver caras conhecidas entre a assistência.

Aos 30 quilómetros tenho a ilusão de que estou perto. Mas lembro-me das palavras sábias do meu treinador que diz que, numa maratona, a “meia” só se atinge aos 32 quilómetros. Pois um profeta dos Classificados do Correio da Manhã não faria melhor prognóstico uma vez que, precisamente aos 32 quilómetros, o meu sistema começa a desligar-se lentamente, sem que nada pudesse fazer para o evitar. Tenho um último gel, mas sinto que ele poderá já vir tarde. Como que estou a ser atraído para um abismo e não há absolutamente nada que eu possa fazer para o evitar. Um avião que vai perdendo cada um dos seus motores e só poderá, neste caso, planar até ao final da corrida.

Restava-me lutar com todas as forças que me restavam, por respeito a todo o treino que fiz ao longo dos últimos meses.

Atravesso um longo e verdejante parque que já não consigo apreciar e o ruído das bandas que tocam pelo percurso começam a incomodar-me em vez de me motivar.
As pessoas junto aos passeios devem ter interpretado a minha expressão de quem estava a tentar galgar um enorme muralha que se tinha erguido à sua frente. Inclinam-se para a estrada e soltam algumas soltam gritos em inglês:

“Come On!!”
“It’s finished!”
“You’re almost there!”

Como que agradecendo a essas pessoas as minhas pernas reagem e a passada acelera por instantes. Mas estou esgotado.

Com os dois últimos quilómetros chega um tónico extra. Tenho a certeza que vou terminar. Não exactamente da maneira como tinha planeado, mas ainda assim com um primeiro tempo decente numa maratona e com a certeza que tenho condições para fazer mais e melhor.

Na recta da meta oiço Wikaboos gritarem pelo meu nome. Foi como voltar a sentir-me em casa. Mas foi impossível esboçar um sorriso para eles ou para as máquinas fotográficas que registavam a minha chegada. Porque já não havia energia para utilizar senão para transportar-me até à meta, andar alguns 20 metros e sentar-me junto a uma vedação onde fiquei alguns minutos a recuperar.

No entanto, durante todo aquele desconforto não me lembro, em momento algum, de me tentar convencer que esta seria a minha última maratona. Pelo contrário…

A Corridinha da Madeira






Funchal, 31 de Dezembro de 2009

Último dia de um ano marcado por um número record de quilómetros a correr por quatro continentes. Para iniciar o programa de festividades, nada melhor do que um treino num cenário belo e vibrante, como é da cidade do Funchal.

Será o meu terceiro “réveillon” na Madeira. E confesso que não me canso de assistir ao intensificar de um frenesim organizado entre os madeirenses com o aproximar da hora que marca o início de um novo ano. Mas vivê-lo enquanto faço uma corrida pelo centro do Funchal foi a primeira vez.

Aqui o 31 de Dezembro ultrapassa em muito um dos mais belos fogos de artifício do mundo. É toda uma experiência de rituais madeirenses inseridas num cenário deslumbrante que enriquecem este dia. Podiam tirar o espectáculo de fogo de artifício daqui e transferi-lo para outro local que certamente não seria a mesma coisa.

Inicio a corrida na Avenida do Mar, muito próximo do local onde, no ano anterior, tive o prazer de participar na Volta da Cidade, conhecida por S. Silvestre do Funchal, a “Corrida de S. Silvestre” mais antiga do país. Esta é uma prova que atrai muitos populares que apoiam com boa disposição e entusiasmo os participantes.

Prossigo junto ao mar em direcção a Este. Pelo caminho tenho por vezes que correr em “modo Cristiano Ronaldo”, pois sou obrigado a “driblar” algumas das centenas de pessoas que por ali fazem os seus últimos passeios do ano. Trespasso algumas colunas de fumo vindas de fornos que vendem comida na rua (bolo do caco?).

Ao largo da baía já se avistam alguns navios cruzeiro de grande envergadura que por aqui permanecem neste dia, injectando na cidade alguns milhares de turistas que desaparecem quase tão rapidamente como aparecem.

Mais adiante o passeio junto ao mar está vedado pela polícia. Ali estão a ser instalados contentores carregados de explosivos para o espectáculo de mais logo à noite. Em seu torno equipas de pirotécnicos ultimam calmamente os últimos pormenores.

Alcanço o Forte de S. Tiago e com ele terminam os passeios junto ao mar. Penso em regressar na direcção contrária, mas decido prosseguir sem destino.

Chegado a uma zona mais antiga da cidade começo a enfrentar ruas com subidas muito íngremes que momentaneamente transformam um “treino-passeio” em “treino-sofrimento”. Enquanto percorria a Avenida do Mar, esqueci-me que o Funchal é uma cidade que, topograficamente falando, pode não ser muito simpática para alguns corredores.

Para trás vai ficando a agitação do centro do Funchal e começo a entrar numa zona mais antiga e rural. As casas vão ficando mais dispersas pelas colinas. Junto a uma pequena localidade, a paisagem é rasgada por uma ribeira que corre em direcção ao mar.

Pelo caminho vou despertando alguns cães de guarda desconfiados. Mas acabam por ser os foguetes e bombas lançadas pelos locais que me provocam alguns sustos durante o meu percurso. O mergulho ocasional numa paisagem calma, silenciosa e tranquila era subitamente por um foguete ou bomba.

Pode parecer estranho. Mas só para quem nunca aqui esteve nesta altura do ano. Esta é uma das características que torna único o fim de ano na Madeira. O fogo de artifício que os próprios madeirenses lançam ao longo do dia nas suas casas. E à medida que nos aproximamos da meia-noite, estas manifestações vão-se sentindo com maior intensidade no Funchal e arredores.

Continuo a subir por estradas estreitas. Cruzo-me com poucas pessoas. Normalmente pessoas que aguardam pelos autocarros Horários do Funchal. Algumas cumprimentam-me e naturalmente que retribuo. Parecia que a corrida de hoje não tinha fim, algures numa localidade (Lazareto?) cheguei a beco sem saída que marcava o meu ponto de regresso. Mas não sem antes aproveitar para contemplar uma extraordinária vista sobre a baía do Funchal, coberta por uma luz alaranjada que indiciava o fim do último dia do ano e o início de uma longa noite. Ao largo os navios parecem posicionar-se para obter a melhor vista sobre o espectáculo do fogo de artifício.

Recupero um pouco do fôlego perdido nas múltiplas subidas que percorri até chegar ao meu ponto de retorno e preparo-me para um regresso que seria bem mais suave, no qual somente tive que soltar as minhas pernas de regresso ao centro do Funchal.

O sentimento de esforço deste treino perdeu-se um pouco com tantas descidas. Pelo que decido prolongá-lo até perto do “Promenade”, no lado Oeste do Funchal.

O trânsito de carros e pessoas começa a intensificar-se, bem como o rebentamento de foguetes e outros explosivos inofensivos. Sente-se que algo de importante está para acontecer. Eu, hipnotizado com tanta excitação em meu redor, acabo por me perder nas distâncias e no tempo.

Já numa tentativa de regresso a casa, percorro a Avenida do Infante iluminada por centenas de lâmpadas coloridas antes de encarar subidas contínuas e ininterruptas. Começo a sentir-me cansado, atrasado e já excedi largamente o treino programado para hoje, tal foi o entusiasmo...

Mas subitamente, e ainda bem longe de casa, sou “recolhido” pelos meus anfitriões e fico a saber que dali a instantes, e já em casa, vou poder saborear os melhores hambúrgueres do mundo, feitos no “Castelo dos Hambúrgueres”. Embora uma actividade desportiva possa parecer contraditória com a ingestão de um hambúrguer logo a seguir para mim foi a melhor das recompensas depois deste final de tarde madeirense.

terça-feira, 13 de abril de 2010

La réconciliation










Paris, Abril de 2009

Maratona de Paris. Quilómetro 30. Em frente avisto a Torre Eiffel. Sinto-me bem fisicamente. Embora não estivesse perfeitamente convicto disso, ocorre-me a ideia de que, eventualmente, completar uma maratona poderia não ser uma tarefa tão dura. Ainda assim, para trás tinha ficado uma primeira parte absolutamente desastrosa, marcada por múltiplos acontecimentos não planeados.

Mas os quilómetros foram-se acumulando e partir de Trocadero comecei a sentir o cansaço físico e mental. Os níveis de ansiedade aumentam. Tento convencer-me que só faltam 10 quilómetros e que já fiz aquela distância múltiplas vezes e sem dificuldade. Mas nunca tinha os últimos 10 quilómetros de uma maratona. Para além disso, tudo aquilo que estava para além do quilómetro 30 era um imenso desconhecido para mim na altura.

Mas parte da energia que havia sido derramada nos quilómetros que para trás ficaram acabou por me ser parcialmente devolvida pelos parisienses que, provavelmente lendo a expressão de cansaço estampada no meu rosto, começaram a chamar ocasionalmente o meu nome. Aqui e ali ouvia-se um “Allez Milton!

Algures no Bois de Boulogne. Sei que estou perto. Mas não consigo avistar a meta. Nem tão-pouco algum aglomerado de pessoas que me indiciem que o final está próximo. Cada quilómetro parece uma eternidade. Passo por tendas da Cruz Vermelha com filas de corredores junto da entrada. Procuram certamente algum alongamento ou massagem miraculosa que lhes permita chegar à meta.

Pelos relvados do bosque vêem-se voluntários (clandestinos) que oferecem massagens aos corredores e ainda me cruzo com bancas que parecem ter sido montadas espontaneamente para servir vinho de Bordéus e Cidra. Afinal é uma maratona em Paris, e há que terminar a prova com estilo. Naturalmente, passei a oferta. Só vejo árvores e lagos à volta. A meta na Avenue Foch só seria avistada a algumas centenas de metros do fim.

Termino a prova e sinto uma enorme sensação de alívio. Completei a minha primeira maratona. Procuro à minha volta algum conforto. Alguém do meu mundo para partilhar o que havia feito ou simplesmente lançar um desabafo depois de um enorme desgaste físico e mental. Acabei por encontrá-la de vestido preto e branco junto ao Arco do Triunfo.

Paris, Dezembro de 2009

De regresso a Paris pela primeira vez após a Maratona de Abril.
Na bagagem um desejo enorme de me reconciliar com aqueles que foram, sem dúvida, e até à altura, os 10 quilómetros mais duros da minha vida.

Precisava relativizar aquele percurso. Para isso queria percorrê-lo em perfeitas condições físicas e sentir o contraste absoluto para com aquela manhã de Abril.
E assim foi. Acordei mais cedo num Domingo e apanhei o metro em direcção a Trocadero. Iniciei o treino em frente Torre Eiffel e prossegui junto ao Sena na “Rive Droite”.

A quase ausência de circulação de veículos e pessoas, bem como a inexistência de qualquer loja aberta denunciavam mais um calmo Domingo parisiense.

Ao contrário da luminosa de manhã de Abril, hoje o dia está frio e corro sob um manto de nuvens cinzentas.

Não me cruzo com nenhum corredor. Somente com os bateaux-mouches que deslizam pelo Sena.

Começo a mover-me para o interior da cidade deixando o rio nas minhas costas. Ao chegar a um bairro tenho a primeira sensação nítida de "déjà-vu". Sei que por ali alguém chamou o meu nome. Alguém que não me conhecia e não me devia absolutamente nada, não deixou de me apoiar.

Entusiasmado com a precisão com que as memórias vão sendo reavivadas através dos dos estímulos sensoriais que vou recebendo ao longo do treino, sigo numa passada mais viva em direcção ao Bois de Boulogne.

Pelo caminho passo pelo Parque dos Príncipes e faço um desvio para um pequeno bairro. Em todas as janelas estão afixados papéis coloridos e por momentos penso que todos aqueles apartamentos estão à venda. Mas tratava-se de uma manifestação coordenada de parisienses locais contra a demolição de um pequeno estádio que aparentemente serve as escolas das redondezas.

Prossigo e o próximo ponto de passagem são os estádios de Roland Garros. Aqui é possível ver alguns tenistas matutinos. Imagino a atmosfera incrível que deve este lugar deve ter aquando da realização do torneio de ténis mundialmente famoso.
Às portas do Bois do Boulogne sinto-me tranquilo e a aproveitar da melhor forma o treino. A absorver cada detalhe que me havia escapado em Abril. Começo a percorrer trilhos enlameados. Provavelmente resultado de uma última noite húmida. Cruzo-me com alguns corredores. Alguns gesticulam levemente com a cabeça deixando uma saudação. Como que um código de boas maneiras que existe entre muitos corredores.

Deslizo até aos lagos do bosque e meio perdido encontro a descida para a Avenue Foch onde terminava a maratona.

De rosto completamente transformado, a Avenue Foch estava despida de corredores e de uma pesada logística de bancas móveis. No lugar de milhares de corredores em êxtase por terem terminado a maratona ou outros a recuperar das suas dores, hoje a avenida está calma e tranquila e conseguem-se ouvir pássaros nos jardins laterais. Subo em direcção ao Arco do Triunfo. Mas hoje não está lá a miúda de vestido preto e branco.
 
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