sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Corro Peste, corro Buda














Budapeste, Setembro de 2010

Manhã de Primavera no Leste Europeu. Milhares de pessoas começam a aglomerar-se no Parque da Cidade para a 25ª Meia-Maratona de Budapeste.


Aqui, como em qualquer parte do mundo, uma prova de corrida é sinónimo de festa. Lado a lado na partida alinham homens e mulheres, profissionais e amadores das mais diversas nacionalidades, raças e religiões. Todos partem ao mesmo sinal sonoro e têm, teoricamente, as mesmas possibilidades de ganhar. O resto é determinado pelo talento e pelo trabalho. Como deveria ser em tudo na vida.

O início da prova é antecedido pela actuação de um grupo de samba que parece ser composto exclusivamente por húngaros. Como que por contágio, os últimos exercícios de aquecimento e alongamento em meu redor passam a ser pautados por ritmos de percussão brasileira. Sinais da globalização de culturas.

10 horas e o tiro de partida. Era importante iniciar a prova a um ritmo vivo para evitar uma corrida atrás do prejuízo mais adiante.

E assim foi. Motivado por dezenas de furiosas lebres contorno a Praça Hősök em direcção à charmosa Avenida Andrássy, classificada em 2002 como Património da Humanidade pela UNESCO.

Deslizamos pela avenida formada por mansões neo-renascentistas e edifícios de fachadas deslumbrantes. Mais adiante a magnífica Ópera de Budapeste.

Em perfeita harmonia com esta primeira fase do percurso, a organização instalou cinco palcos improvisados onde pianistas interpretavam clássicos de Ferenc Erkel, Gustav Mahler e Franz Liszt.

Recordei-me dos tempos em que ouvia os Nocturnos de Chopin interpretados pela Maria João Pires durante treinos de recuperação. Aí o objectivo era manter um passo lento e regenerador. Hoje precisava de um passo frenético e que me levasse a ultrapassar anteriores máximos.

Após descer a Avenida Andrássy e uma rua seguinte, vislumbro o Rio Danúbio e a fantástica Ponte das Correntes (Széchenyi Lánchíd).

Pelo caminho não se avistam muitos populares nas ruas a aplaudir quem por ali passa no pelotão. Talvez muitos recuperem ainda das noites loucas nas caves de Budapeste, muito notabilizadas pelo clássico dos Mão Morta. Pois se assim for, estão perdoados os habitantes de Budapeste!

Já do lado de Buda, a prova prossegue junto às margens do Danúbio. Neste momento estávamos em perfeita sintonia pois ambos corríamos em direcção ao Mar Negro com a mesma determinação e confiança, como se nada nos pudesse parar.

O Sol aperta e o mercúrio sobe. Mas uma temporada de treinos em África e no implacável Verão português fez com que estivesse preparado para mais esta dificuldade.

Por volta do quilómetro 9,5 o primeiro ponto de retorno. Passámos a correr na direcção oposta à corrente do rio. E a Natureza como que deixou de colaborar connosco, pois senti de imediato um vento intenso contra o meu corpo.

Penso nos cerca de 7 quilómetros de duelo que teria que travar contra o Danúbio e começo a duvidar que este seria o dia para quebrar novas barreiras.

Mas o quilómetro 10 chegou com uma melhor marca pessoal da distância e um renovar de confiança.

Passo junto à magnífica e imponente fachada estilo “art nouveau” do Hotel Gellért onde estava hospedado. Inevitável suspirar pelas massagens e banhos de águas termais (ricas em cálcio e magnésio) que me esperavam da parte da tarde. Mas sei que muito tenho que sofrer até lá.

Um coro de aplausos espera-nos à entrada da Ponte da Liberdade (Szabadság híd), a mais bela de Budapeste. Toda construída em ferro e exemplarmente conservada.

Já de regresso a Peste, tempo para um reforço de frutos silvestres à base de cafeína e guaraná antes de enfrentar um novo “round” contra o vento que corria a favor do Danúbio.

Nas margens do Danúbio aproximo-me de um grupo que corria a um ritmo superior para abrigar-me do vento. Enquanto aguentei fui atrás deles. Éramos um grupo de cinco e corremos silenciosamente alinhados a um passo sincronizado. Confiávamos no comandante do pelotão e a corrida quase se tornou mecânica. Consciente da sua responsabilidade, sempre que havia um desnível no solo, o líder do pelotão fazia um gesto apontando para o obstáculo. Este era imediatamente reproduzido por todos sem excepção até à cauda do grupo. A corrida tem destes momentos únicos de solidariedade. Ali estava um líder anónimo a dar o peito ao vento em nome do seu pelotão de desconhecidos e ainda encontrava forças para alertar para as trajectórias que os demais deveriam seguir.

Novo ponto de retorno ao quilómetro 16 e com ele esperava obter uma trégua em direcção à meta final. É certo que o vento deixou de exercer a sua força contra nós, mas também não demonstrou a sua solidariedade dando-nos um merecido apoio.

O coração bate forte. Mas não sei quanto ao certo desde que me libertei do medidor de frequência cardíaca há dois meses. Não tenho dores. Não me sinto esgotado. Faço contas ao tempo perdido nos últimos quilómetros e concluo que estou muito próximo do objectivo para o qual treinei.

Deixo o Danúbio definitivamente para trás enquanto subo a cidade em pequenos troços em direcção ao Parque. As paisagens perderam interesse pois entramos em zonas residenciais, percorremos viadutos e zonas de obras. Mas a motivação é crescente pois já “cheira” a meta. E com ela regressam os aplausos que crescem em quantidade e volume até final.

Sei que vou conseguir e mentalmente percorro alguns dos sítios por onde treinei para aqui estar e todos aqueles que me ajudaram nos últimos meses.

Da Baía à Ilha de Luanda. Da Cidade do México, passado por Acapulco e Mérida. Do Parque da Paz à Costa da Caparica.

A plateia saúda todos os atletas. Muitas das palavras de apoio são proferidas em magyar e portanto imperceptíveis. O “speaker” vai dizendo banalidades em inglês sobre os países de origem dos atletas que vão passando a meta: “Italy! Pizza! Macaroni!”

A minha satisfação interior mais do que compensa a luta e o cansaço acumulado nos últimos 21,097 quilómetros. Sensação de objectivo cumprido e o conforto de saber que ainda não conheço os meus limites nas corridas em particular, mas acima de tudo na vida em geral.
 
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